2019 entra para a história do Brasil como o ano em que a “coisa está invertida”. E há um risco nisso: nos acostumarmos com essa inversão profunda e improfícua de valores. Vem aí o dia 24 de dezembro, quando muitas famílias se reúnem, sob o espírito judaico-cristão de celebração simbólica da data do nascimento de Jesus Cristo.
E para nós que estamos no corredor do hospital esperneando todos os dias para mantermos a sanidade mental, não será fácil conviver com alguns que foram infectados – só pode ser essa a explicação – pelo vírus da intolerância, do preconceito, do conservadorismo reacionário, da conspiração, da mentira e da contraciência como forma de pensar.
É complicado porque algumas coisas não têm ligação nenhuma com a posição política da pessoa – mas sim com a própria humanidade. É tipo aquela frase: “respeito é bom e todo mundo gosta”. Mas realmente a inversão está fora do comum. E suportar alguns de nossos pares mencionar com água na boca os desatinos e falas bolsonaristas é de nos deixar entediados. Cotas, homofobia, racismo, um bocado de temas que vão acabar acontecendo e é melhor preparar a comunicação não-violenta porque é o único meio de dialogar – se é que aceitam diálogo.
Os sinais da inversão
O Brasil é um país tão invertido, mas tão invertido, neste 2019 que:
- um cidadão negro, Sérgio Camargo, foi indicado por Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, para a Fundação Palmares, órgão que cuida da promoção da cultura afrobrasileira, e este dizia que racismo no Brasil era “nutella”, que escravidão “foi benéfica para os descendentes” e que o Dia da Consciência Negra deveria ser abolido por “causar incalculáveis perdas à economia do país”;
- um cidadão seguidor do autointitulado filósofo Olavo de Carvalho, Rafael Nogueira, foi indicado por Bolsonaro para a Biblioteca Nacional, instituição bicentenária que faz a salvaguarda histórica das publicações em território nacional, e este associa o analfabetismo à presença de trechos de músicas de Caetano Veloso e Gabriel O Pensador em livros didáticos.
- A Biblioteca Nacional, entidade pública, não vai mais fazer o ISBN – agora será a Câmara Brasileira do Livro, entidade privada, ou seja, a ordem é privatizar tudo mesmo;
- Dante Mantovani, atual presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte) indicado por Bolsonaro, tem sérios problemas com o rock ao associá-lo ao aborto, sexo, drogas e até ao satanismo. É de rir de nervoso que ele também fale que a Unesco é máquina de propaganda para a pedofilia, as fake news são conceito globalista para impor vontade da imprensa e ainda que o fascismo seja de esquerda;
- Bolsonaro mandou deixar de usar os radares móveis nas rodovias federais – mas foi vencido em liminar da Justiça;
- Bolsonaro decretou o fim do Seguro DPVAT – mas foi vencido em liminar do STF;
- A loja de chocolates de Flávio Bolsonaro vende mais na época de pagamento do décimo terceiro dos servidores da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro do que durante a Páscoa;
- Agora que explodiu a relação entre os Bolsonaro e o Escritório do Crime, braço da milícia carioca suspeita de matar Marielle Franco, já temos dez fatos que ligam a família aos milicianos;
- Um liberal quer imposto – Guedes, o pai da era de liberalismo no Brasil (segundo seus apoiadores mais acalorados), quer taxar as transações digitais – afinal, liberal no governo descobre que governo precisa de dinheiro para funcionar;
- O presidente que se elegeu falando que não ia dar indulto mentiu descaradamente e indultou sua base política – policiais, agentes de segurança, bombeiros, etc. – concedendo um perdão generoso para crimes culposos – isto é, quando houve imprudência, negligência ou falta de cuidado;
- O Ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse que tem plantações de maconha nas universidades públicas e para “comprovar” mostrou uma reportagem antiga da Rede Record;
- Pedir a volta do AI-5 ou mencioná-lo de forma relativizada virou norma para Guedes, Eduardo Bolsonaro e Mourão.
Daria para escrever mais um monte, mas eu sinceramente cansei. Nesta fase, em que cumpro um período sabático das redes sociais, penso em estendê-lo por mais alguns meses, mas não posso. É preciso erguer a cabeça e lidar diariamente com tudo isso que está aí.
O Brasil é um país que os anos passam e não nos imaginamos dando razão à um certo tipo de personalidade pública, como Temer, Rodrigo Maia, FHC e agora, entra no rol o Gustavo Bebianno. Assim como ele, está na hora de todo mundo começar a trabalhar pela interdição do Jair Messias Bolsonaro. Torço para que não, mas a caneta Bic ainda pode acabar com o país. Pobre caneta, mal usada.
Saudades, Dilma.